Data inesquecível a de 2 de Maio de 2016 para os sócios e adeptos do Leicester e para os amantes do desporto-rei. Nesse dia, o “Robin Hood” inglês consagrava-se e conquistava a Premier League, suplantando a concorrência dos milionários do “big-6” Arsenal, Tottenham, Manchester City, Manchester United, Chelsea e Liverpool.
Sete temporadas volvidas, em solo espanhol, o Girona lidera a La Liga e espelha-se no feito dos “foxes” de Claudio Ranieri. Miguel Muñoz – Míchel para o mundo da bola – é o comandante da formação catalã que à passagem da 13ª jornada comanda a prova com um saldo de 34 pontos, fruto de 11 vitórias, um empate, uma derrota, 31 golos marcados e 16 sofridos. Apenas passou um terço da “maratona” de 38 rondas, será ainda precoce falar na conquista do “caneco”, já que os “habitues” Real Madrid, Barcelona e Atlético de Madrid estão a morder os calcanhares com dois, quatro e seis pontos de atraso, respectivamente, sendo que os “colchoneros” de Simeone poderão aproximar-se ainda mais caso vençam o jogo em atraso que têm diante do Sevilha.
Girona at top of the La Liga table pic.twitter.com/FWKymu5jDl
— Troll Football (@TrollFootball) November 6, 2023
Um conto de fadas que começou em 2021/22
Na temporada 2021/22, o Girona lutava pela sobrevivência e ocupava, à 12.ª jornada, o 19.º posto na La Liga 2. A recuperação foi fantástica e nesse ano desportivo subiu de divisão. Na época transcorrida ficou na parte de cima da classificação (10.º posto) e dois anos depois é o líder inquestionável da La Liga. Alguns dos denominadores comuns nesta meteórica ascensão são o director-desportivo Quique Cárcel e o “mister” Míchel.
O conto de fadas tem sido construído à base de muito suor, na qualidade do trabalho levado a cabo pela equipa técnica e na forma criteriosa como o departamento de prospecção tem trabalho para apetrechar a equipa, e exemplos não faltam para atestar a competência do clube nos bastidores, que construiu um plantel que mescla a irreverência de Savinho, a veia goleadora de Artem Dovbyk, a segurança de Yangel Herrera, a polivalência de Eric García ou a experiência de Daley Blind. Além disso, diversos jogadores ganharam uma segunda vida futebolístico desde que ingressaram no clube nos dois últimos anos, casos de Gazzaniga (resgatado a custo zero), David López, Aleix García, Iván Martín ou Tsygankov (custou apenas €5M). Em sentido inverso, Oriol Romeu regressou ao Barcelona, Santiago Bueno foi vendido ao Woverhampton, Rodrigo Riquelme voltou à base, o Atlético Madrid, e Taty Castellanos (cogitado pelo Benfica) passou a militar na Lazio.
O facto de pertencer ao amplo universo de clubes do City Football Group – tem 50% do emblema catalão, sendo que a outra metade ao presidente do conselho de administração Pere Guardiola, irmão de Pep – dá segurança financeira e desportiva para que o projecto seja desenvolvido de forma sustentável e sem precipitações.
Como jogam os “blanquivermells”?
O surpreendente líder do campeonato espanhol é uma equipa que dá gosto ver jogar. Com os olhos sempre colados na baliza adversária, gosta de marcar golos e cada partida em que entra em cena é sinónimo de espectáculo garantido. O facto de ter o maior número de golos marcados na prova, suplantando as linhas ofensivas de Atlético, Real Madrid e Barça, aguça o apetite.
“O Girona é uma equipa que promove um jogo ofensivo e o seu registo goleador demonstra essa vocação. Propõe-se atacar a partir de um 1x3x4x2x1 e defende em 1x4x4x2. Desenha uma construção a três, onde assumem papel de destaque Eric García (descobre pelo passe) e Daley Blind (avança com critério), ambos com passagens por clubes de outra dimensão. Arnau Martínez, ora alarga como defesa-direito, ora se fixa mais por dentro, numa altura em que David López está de fora (perfil de central posicional, robusto, menos ágil). Em várias situações vemos Aleix García recuar para ver o jogo de frente e acrescentar sentido aos primeiros passos. Com formação no Real Madrid, Miguel Gutiérrez parte de lateral/ala-esquerdo, mas tem muita liberdade e vai sendo uma das melhores surpresas do campeonato (já foi associado ao Arsenal). Avança com a mesma facilidade por fora como aparece numa zona mais interior para receber e acelerar com a bola”, começa por nos explicar Filipe Coelho, analista/comentador da DAZN.
[ Remates/xG (esq.), passes e conduções super progressivas, acções defensivas (dta) do Girona na La Liga 23/24 ]
- O Girona é apenas a sexta equipa com mais remates (13,7) por jogo na Liga, mas é o melhor ataque e a segunda com melhor conversão de disparos em golo (17,3)
- O mapa do meio mostra os passes super progressivos (5,4), que permitem a aproximação à baliza adversária em pelo 50% e no mínimo de oito metros, e as conduções super progressivas (2,9), que aproximam 50% e pelo menos 15 metros: se neste passe o Girona é apenas 14º, na condução é a segunda com mais, apenas atrás do Real Madrid, o que mostra o perfil da equipa, sólida e com grande capacidade nas transições
- O mapa da direita mostra um Girona que não pressiona muito à frente e prefere esperar pelos adversários, o que potencia as tais transições em condução. É a sétima equipa com menos acções defensivas no meio-campo contrário (8,8 por jogo)
As referências do Girona
Com algumas similitudes ao ideário preconizado na casa-mãe, o Manchester City de Pep Guardiola, os catalães gostam de “tratar bem” o esférico, promovendo uma circulação cadenciada e de constantes trocas posicionais, sendo que na casa de máquinas do meio-campo destacam-se alguns nomes: o esquerdino Iván Martín, o todo-o-terreno Yangel Herrera e o cérebro Aleix García. Na linha de ataque, realce para Tsygankov: “Tende a procurar movimentos interiores (canhoto à direita), mas está confortável quando tem de utilizar o pé direito. A outra opção é Yan Couto (com passagem pelo Braga e já com três assistências este ano), tecnicamente muito evoluído, oferecendo mais garantias no “vai e volta” e no ajuste defensivo em relação ao ucraniano”, acrescenta, à GoalPoint o especialista, que ainda destaca a magia de Savinho: “Parte para cima do adversário, forçando o 1×1 e marcando diferenças pela irreverência e imaginação no drible. Como referência atacante já há menos Cristhian Stuani, mas os catalães recrutaram Artem Dovbyk ao Dnipro para suceder a Taty Castellanos (melhor marcador com 13 golos, em 22/23). Dovbyk é um avançado muito possante, capaz de ganhar espaço na área, seja em pequenas movimentações, seja aguentando com o corpo a carga dos opositores servindo de pivot para quem chega de trás”, salienta Filipe Coelho, frisando a propensão ofensiva dos espanhóis, que muitas vezes colocam quatro ou cinco elementos em zonas de finalização na área do opositor.
Com a procissão ainda no adro, será utópico colocar os “albirrojos” na corrida pelo título?
“Antes da jornada inaugural, em San Sebastián (1-1 com a Real Sociedad), Míchel dizia que era o ano do Girona dar um passo em frente. Mas nem nos melhores cenários se poderia imaginar esta ‘performance’ dos catalães. A permanência – primeiro objectivo da época – é um dado praticamente adquirido e o horizonte passa por fazer melhor do que em 2022/23 – 10º lugar a quatro pontos de um lugar europeu. Há condições para isso e, eventualmente, até para uma candidatura europeia. Desde logo por já ter aberto um intervalo pontual interessante para o 7º classificado Bétis e ainda por ter um plantel equilibrado e com margem para ser explorado em algumas posições. Yan Couto, David López, ainda há Portu e Stuani como segundas linhas atacantes e Pablo Torre é um médio emprestado pelo Barcelona a quem se aponta grande futuro”, observa Filipe Coelho.
O final da primeira volta será exigente para a turma de Míchel, sendo que no dérbi catalão frente ao Barcelona, na visita ao reduto do Bétis e nas recepções ao Athletic Bilbao e Atlético de Madrid, serão excelentes ocasiões para podermos “aferir da vitalidade e da consistência pontual do Girona, que passará por esses duelos, sendo certo que o mercado de Janeiro poderá trazer algum tipo de desfalque ao plantel. Ainda assim, é uma equipa que tem revelado grande resistência mental e capacidade para reagir à adversidade – recentemente deu a volta aos jogos em terrenos tão complicados como o do Osasuna e do Rayo Vallecano”, relata o comentador.
Quem são os jogadores a ter debaixo de olho?
Diversas peças estão a emergir neste sensacional Girona. São os casos, como já referimos, de Aleix García, o “pacemaker” que dita os ritmos, o virtuoso Savinho ou o “artilheiro” Artem Dovbyk.
Começando pelo médio espanhol, García está, aos 26 anos, finalmente a justificar a aposta que o grupo City fez nele na longínqua temporada 2015/16, quando ainda frequentava os juniores do Villarreal.
“Nesta fase está a atingir a maturidade futebolística. Assumiu a sucessão de Oriol Romeu e é o grande pensador do jogo do Girona. Intervém na segunda fase de construção, mas é comum vê-lo recuar para próximo dos centrais para oferecer mais fluidez na saída. Gere os ritmos de jogo e distribui à distância com facilidade. Sabe medir quando pode avançar, o que já lhe valeu participação em vários golos. Acaba de ser chamado à selecção espanhola, tornando-se o primeiro jogador da história do Girona a ser convocado para a La Roja”, aponta Filipe Coelho.
👏 FUNDAMENTAL.
❤️ ¡@97_aleix es el único jugador de campo que ha disputado TODOS los minutos de #LALIGAEASPORTS! pic.twitter.com/eQbf0TeJO8
— LALIGA (@LaLiga) November 14, 2023
No ataque, há samba e o ritmo tem sido ditado por Savinho, de 19 anos. Formado no Atlético Mineiro, fez as primeiras incursões no futebol europeu no PSV Eindhoven, está vinculado ao Troyes (outros dos clubes pertencentes ao conglomerado dirigido pelo City Football Group) e, nas mãos de Míchel, é “o principal motor desequilibrador do Girona, é canhoto a jogar pelo flanco esquerdo, dá largura ao jogo catalão e parte para cima dos adversários no 1×1. Não recebe apenas no pé, também é capaz de atacar o espaço, combinando com Miguel Gutiérrez e correspondendo em associações com Dovbyk”.
Contratado ao Dnipro por cerca de €7,75M, Artem Dovbyk é o reforço mais caro de sempre do clube espanhol e tem correspondido com números: 14 partidas, sete golos e cinco assistências. “Sendo um avançado bastante físico, não deixa de ter nível técnico e facilidade de movimentação – já o vimos a sair da área para intervir na criação e meter últimos passes. Capaz de segurar a bola, aguentar cargas e funcionar numa lógica de pivot. Mexe-se com destreza na área e está a ser gélido no momento de finalizar. Ganhou a titularidade à 5ª jornada, sendo um dos principais responsáveis pela faceta goleadora da equipa”, acrescenta o analista Filipe Coelho.