Diogo Jota foi devidamente valorizado em Portugal? Obviamente, não

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Passadas algumas horas da tragédia que marca o adeus prematuro de Diogo Jota, a suspeita foi  lançada, em tom de contrição, por alguns dos muitos convidados televisivos instados a comentar a vida e carreira do jogador: será que demos a devida importância à carreira e feitos de Jota, em Portugal?

Atentos ao tema, e tendo dado aqui tantas vezes conta da faceta estatística do que ia atingindo o “menino de Gondomar”, ao longo dos anos, a dúvida não nos surpreendeu e a resposta já a conhecíamos. No entanto, faltava colocar factos em cima da mesma, de modo a apurar a verdade. Preparámos essa análise a convite da SIC Notícias, para ser partilhada no programa “Novos Donos da Bola”, na data de publicação deste artigo, mas decidimos também escrever sobre o tema, para que todos possamos ter noção do provável porquê de um dia o jogador se ter intitulado como “underrated”, numa entrevista rápida concedida a um media inglês.

O trajecto invulgar e exponencialmente mais difícil que os demais, como jogador que não só não se lançou como nem sequer passou pela formação de nenhum dos top-5 portugueses já torna Jota num caso profundamente raro. A partir daí, tudo o que atingiu desde que colocou pé em Inglaterra, por mérito próprio, devia “valer o dobro” aos nossos olhos, mas basta valer exactamente o que é suposto para já ser impressionante, sobretudo após ter chegado à Premier pela força das próprias pernas, ao ajudar o Wolves a subir e ter iniciado as suas sete gloriosas épocas na melhor Liga do Mundo. Será precisamente por essas sete temporadas que o vamos medir e destacar, comparado com os restantes 46 portugueses que por lá jogaram durante esse período. E será assim que perceberemos o quão “desvalorizado” foi, por cá, o que Diogo Jota atingiu, no plano mediático mas não só, pois concluiremos falando da Selecção.

Jota, o terceiro português que mais foi a jogo na Premier

Na “era Jota” encontramos apenas 10 portugueses que jogaram mais de 10 mil minutos na Premier League, em simultâneo com o gondomarense. Entre eles, o avançado do Liverpool surge como o terceiro português com mais jogos na melhor liga do mundo, exactamente 190. Acima dele apenas Bruno Fernandes (195) e, bem mais acima, Bernardo Silva (231). Em minutos jogados o “20” despediu-se com 11.474 minutos na EPL, “apenas” a oitava maior minutagem lusitana desde 18/19, a sua primeira época no escalão máximo inglês. Se lhe dissermos que Jota jogou menos 5.777 minutos que Bernardo Silva e menos 5253 que Bruno Fernandes nestas sete Premier, isso poderá parecer uma desvalorização do percurso do Diogo mas a verdade é que isso só vai realçar ainda mais o que vamos partilhar em seguida.

O maior goleador luso da Premier, na sua era

O “20” de Liverpool marcou 63 golos nas sete temporadas de Premier que disputou. Pode parecer muito ou pouco, depende do ponto de vista e grau de acompanhamento do leitor mas aqui vão algumas medidas comparativas que ajudam a relativizar com justiça o feito. 

Em primeiro lugar nenhum português marcou mais golos que ele na EPL desde 18/19. Aliás, Jota faz parte de um grupo de apenas sete jogadores portugueses que conseguiram marcar mais de sete golos na prova. Mas o “título” de português mais goleador da Liga inglesa na sua era ganha um peso ainda maior se tivermos em conta mais um facto: o Diogo não marcou qualquer um dos seus golos de penálti ou livre directo, até porque nunca cobrou nenhum. O último golo do português pelo Liverpool permitiu-lhe aliás descolar de Bruno Fernandes, o segundo português mais goleador, com 62 golos, mas no caso de Bruno, com peso significativo de grandes penalidades e livres, sem os quais tem “apenas” 37 golos comparáveis com os obtidos por Jota.

[ O último golo de Diogo Jota pelo Liverpool, e logo num dérbi ]

O mais influente jogador ofensivo português da melhor liga do mundo

Se somarmos as 20 assistências de Jota na Premier aos golos que marcou chegamos a um total de 83 acções para golo (o que os “Antunes” ingleses chamam “goal involvements”). E mais uma vez apenas Bruno Fernandes bate os números do Diogo, com 113 acções (62 golos e 51 assistências). Se fizermos novamente o desconto do “privilégio” (e talento) de Fernandes, como primeira opção nas bolas paradas do United, a coisa fica bem mais próxima: 88 “goal involvements” para Bruno. Atrás do Diogo surge Bernardo Silva, com 79, mas com o tal excedente significativo de minutos. Mas quem foi de facto o mais influente?

É comum medir-se a “influência” ofensiva dos jogadores nas épocas dos seus clubes dividindo apenas o seu total de golos e assistências pelos totais da equipa, numa dada prova. O exercício é “estatística de padeiro”, pois ignora que muitos desses golos são obtidos em jogos ou fases do jogo em que o jogador em análise não está em campo. Por aqui gostamos mais de medir a influência (participação directa) dos jogadores nos golos obtidos pela equipa nos minutos em que jogam e neste caso vamos ter em conta não só os golos e assistências mas também as ocasiões flagrantes criados, para descobrirmos a percentagem de contribuição ofensiva GAO (Golos + Assistências + Ocasiões) de Jota e restantes portugueses que com ele coexistiram na Premier.

A conclusão? Jota teve participação directa em 42,3% dos golos e ocasiões flagrantes criados pelo Liverpool e Wolves na Premier, com ele em campo, ao longo de sete anos. No grupo de jogadores portugueses com mais de 10.000 minutos ninguém o bate neste indicador, nem mesmo Bruno Fernandes (40,6%) ou Bernardo Silva (19,4%). Para encontrarmos um português que tenha suplantado esta percentagem de influência teríamos de considerar Cristiano Ronaldo, na sua segunda passagem pelo United, com 47.8%, mas o capitão da Selecção jogou apenas 2980 minutos (19 Golos e 3 assistências), amostra que não merece comparativo, neste contexto de avaliação da “era Jota”.

O mais certeiro, até de cabeça

Os feitos que tornam Jota num “rei da Premier” na sua era não ficam por aqui. Apesar de se caracterizar como “pequeno”, nenhum português marcou mais golos de cabeça na EPL desde 18/19, dez. O mais próximo foi João Palhinha, com quatro. A sua pontaria foi aliás transversal a todas as formas de finalização pois o Diogo concretizou 16,2% dos 390 remates que fez, mais uma vez o registo nacional mais certeiro na sua Liga inglesa, e desta vez nem o especialista Cristiano Ronaldo conseguiu acompanhá-lo, na sua segunda passagem, ficando-se pelos 14,1% de conversão, nos 135 remates que tentou.

Jota foi também o português com mais ocasiões flagrantes nos pés/cabeça na Premier, o “cara-a-cara” com o guarda-redes. Foram 116 ocasiões, com 41,4% de aproveitamento. Comparativo? Não vale a pena, nenhum português teve tantas ocasiões flagrantes ou as converteu com tanto acerto.

No drible? Apenas Bernardo o bateu, onde mais interessa

Entre Jota e Bernardo Silva, se convidado a eleger o melhor “driblador”, provavelmente o leitor escolherá Bernardo Silva. A coisa até faz sentido pois o jogador do City não só foi o mais driblador da “era Jota” como somou mais dribles eficazes (160) na zona mais relevante, o último terço adversário. Acontece que Diogo Jota lhe ficou logo atrás, em segundo, com 119. Se tivermos novamente em conta o fosso de minutos que cada um jogou nestes sete anos…

Aliás, no que toca a duelos ofensivos, para lá do drible temos também as faltas ganhas, a forma como muitas vezes quem defende tem de evitar ser driblado pelos predestinados. Aí… temos Jota outra vez. O “red” foi derrubado em falta 226 vezes, mais seis que o segundo mais “castigado”, Bruno Fernandes, com 220.

Mais desarmes e recuperações do que quem?!

O craque mencionado não nos vai levar a mal esta próxima surpresa, até porque isto não deprecia a sua qualidade mas destaca sim merecidamente o Jota. É que até nós conferimos três vezes este dado, convencidos apenas dos méritos ofensivos do nosso Diogo, e pelos vistos alheios a quanto ajudava sem bola, na caça à mesma. E qual é a surpresa?

O gondomarense somou 167 desarmes na Liga inglesa. Até aqui tudo normal, afinal “bichos” especializados como João Moutinho despediram-se daquelas terras com 406!, nos mesmos sete anos. Mas o que não esperávamos era, ao comparar os 10 portugueses acima dos 10.000 minutos, encontrar o Diogo com mais desarmes do que… Rúben Dias, e não é por pouco, visto que tem mais 40 do que os 127 somados pelo central do City! Rapidamente espreitámos as recuperações posicionais de bola e… outra vez “surpresa”, com 563 para Jota e 528 para Dias. Incrível Diogo Jota, incrível!

[ Os principais destaques dos feitos comparados do avançado na Premier, ao longo de 7 edições ]

Chegados à Selecção… surge a depressão e fica uma lição

Chegamos a esta altura do percurso convencidos de que Diogo Jota foi, para ser conservador, um dos três mais influentes jogadores portugueses da Premier League nestes sete anos. Sabemos também que foi o melhor goleador e que havia em Inglaterra um alemão que teria boa noção de tudo isto pois nunca prescindiu dele, à medida que ia chegando (e partindo) concorrência ao pequeno genial de Gondomar. Virando a agulha para a Selecção portuguesa, seria natural encontrarmos um estatuto e números condizentes com tamanha “obra”. Puro engano.

Jota partiu a uma internacionalização de atingir os 50 jogos por Portugal. Nas 49 aparições que teve com as quinas ao peito somou 25 acções para golo (14 golos e 11 assistências), um pecúlio excelente até porque foi titular em apenas 24 desses 49 jogos e é aqui que começamos a “torcer o nariz”. É que o Diogo jogou uma média de 48 minutos por partida, um registo tudo menos condizente com tudo o estatuto Premier que conquistou. 

É certo que as lesões também não ajudaram mas nos últimos 20 jogos internacionais em que participou Diogo Jota foi titular apenas… três vezes. Curiosamente, numa delas, protagonizou uma noite excepcional, com dois golos e uma assistência, na maior vitória de sempre da Selecção, num jogo de qualificação para o EURO 2024, por 9-0, uma daquelas raras partidas sem o capitão Cristiano Ronaldo. Mas esse jogo aconteceu em… Setembro de 2023. Jota despediu-se como campeão inglês 24/25, mas não era titular de Portugal desde… Setembro de 2024.

São muitas as razões que podem ser dadas para esta secundarização do melhor goleador português dos últimos sete anos da Premier League e, em última análise, a escolha é sempre do treinador, ao dia de hoje, o fenómeno custa ainda mais perceber e dá maior sentido ao célebre “underrated” com que Diogo Jota se caracterizou certa vez, mesmo que não fosse este o contexto da sua resposta descontraída.

Ainda sobre a Selecção, deixamos um último paralelismo demonstrativo de que o português merecia muito mais do que recebeu. Diogo Jota e João Félix deram passos decisivos nas suas carreiras precisamente na mesma altura. Jota viveu a sua primeira Premier League, ainda pelo Wolves, em 18/19, precisamente a época em que João Félix viveu a sua melhor temporada, ainda pelo Benfica, antes de rumar talvez cedo demais por um caminho cheio de dificuldades e frustrações que ainda vai a tempo de inverter. No entanto, e apesar da diferença diametralmente oposta de trajectos destes dois internacionais lusos, Diogo Jota soma apenas mais seis minutos jogados pela Selecção nacional do que João Félix (2385 para Jota, 2379 para Félix). Algo profundamente errado aconteceu, e a “culpa” não é certamente de jogadores mas sim de uma forma completamente falhada de aproveitar, no contexto Selecção, o que Jota atingiu, ao mais alto nível, para si e para nós, vítima de outras prioridades que viciam o futebol de hoje.

[ o primeiro golo do Diogo por Portugal: estádio cheio ou vazio, a mesma classe ]

Obrigado Jota, os números também mostram que serás sempre um “ícone”

Ao terminar a redacção desta análise surge a tendência para sentir tristeza, ao pensar que Diogo Jota não só partiu cedo demais como foi ainda por cima claramente injustiçado, não só pelo futebol português como também pelos media, que nunca terão dado o devido relevo ao que atingiu na melhor Liga do mundo. Jota terá sido vítima de diversas circunstâncias, desde a concorrência ao percurso, da falta de “escola dos grandes” a uma personalidade reservada e simples, dissonante do exibicionismo de marketing que hoje se espera (e exige) das estrelas do futebol. 

Mas não há razões para tristeza, para lá da despedida precipitada do homem e o brutal impacto da tragédia junto dos que lhe são próximos. O sorriso de Jota ao longo da vida, a família e amizades que construiu mostram um Diogo que nos deixou cedo demais mas ganhou o seu “jogo da vida”, naquilo que realmente interessa. O “20” foi um “jogador sem haters” e sobretudo um colega, amigo, filho e pai excepcional.

Se não fizemos justiça ao jogador, em vida, que o seu exemplo nos sirva de reflexão para o futuro, para que os próximos Diogos sejam reconhecidos e premiados com maior honestidade e critério, mesmo que não sejam os mais “virais”, os mais “trendy”, os mais “marketable”, ou aqueles em quem um qualquer analista ou scout do “achómetro” decide identificar mais “potencial”, ignorando a lenda que Jota acabou por ser, dentro e fora do campo.

[ A fechar, a mais recente homenagem do Liverpool ao seu Jota, publicada enquanto escrevíamos este artigo ]

Pedro Ferreira
Pedro Ferreirahttps://goalpoint.pt
Co-fundador da GoalPoint Partners, em 2014. Desempenhou entre 2011 e 2013 os cargos de Secretário-Geral da SAD do Sporting Clube de Portugal, Director da Equipa B e da Academia Sporting.